RESUMO
A SOCIEDADE
brasileira recebe, anualmente, a estimativa de perda de floresta na Amazônia
por meio da taxa de desflorestamento divulgada pelo Inpe, a qual, em 2004, foi
de aproximadamente 26.130 km2 .
O que não se conhece é o quanto de recursos naturais se perde a cada quilômetro
quadrado de floresta destruída. Neste trabalho, apresentamos números concretos
desta perda, baseados em estudos recentes sobre a densidade de plantas e de
alguns grupos de animais na Amazônia. Com base nisso, defendemos a idéia de que
não há necessidade de se ampliar o desflorestamento na região e que, portanto,
qualquer licença de desmatamento deveria ser proibida na Amazônia. Sugerimos
também que o sistema de ciência e tecnologia regional deve ser descentralizado
através do desenvolvimento de programas de pesquisa integrados, focalizados no
desenho e no teste de modelos de territórios sustentáveis para os diferentes
setores da região.
Palavras-chave: Amazônia;
biodiversidade; território sustentável; desflorestamento.
Introdução
A PRODUÇÃO CIENTÍFICA
sobre o conhecimento dos vários aspectos da diversidade biológica da Amazônia
brasileira vem crescendo de maneira expo-nencial na última década. Na mesma
direção, observa-se que as instituições públicas e privadas vêm experimentando,
por meio de uma estratégia de parcerias, uma nova fase de articulação
institucional. Essas ações são movidas pelo objetivo comum da necessidade de um
avanço rápido do conhecimento científico sobre a composição e a ecologia das
espécies amazônicas. Essa estratégia, atrelada à complementaridade de
competências e experiências institucionais, é uma resposta ao padrão atual das
altas taxas de desmatamento e destruição de paisagens naturais, uma vez que o
processo de mudança no uso da terra é sempre mais veloz do que o processo
científico de descrição de novas espécies ou descobrimento de compostos
naturais para uso medicinal ou industrial. Por meio da troca de informações e
da criação de programas de pesquisa interdisciplinares, espera-se que os
resultados da investigação científica tornem-se mais eficazes e direcionados
para subsidiar decisões de governo e políticas públicas.
Um dos maiores
desafios científicos brasileiros é planejar um sistema de gestão territorial
para a Amazônia, a região de maior biodiversidade do planeta, que leve em conta
tanto a conservação dos seus extraordinários recursos naturais como a promoção
do desenvolvimento social e econômico dos quase vinte milhões de habitantes que
vivem nessa região. O conhecimento científico sólido acumulado durante décadas
pelas instituições regionais de pesquisa ocupou um papel irrelevante nessa
discussão. Apesar de toda a literatura publicada até então, que indicava que a
diversidade e a fragilidade dos ecossistemas amazônicos exigiam uma ocupação
cuidadosa e bem planejada, a colonização da Amazônia a partir do final da
década de 1960 foi marcada pelo processo violento de ocupação e degradação
ambiental característica das "economias de fronteira", nas quais o
progresso é entendido simplesmente como crescimento econômico e prosperidade
infinitos, baseados na exploração de recursos naturais percebidos como
igualmente infinitos (Becker, 2001). Com base no ferro e no fogo e sem levar em
consideração as peculiaridades dos diversos espaços ecológicos amazônicos e os
desejos e anseios da população regional, um modelo exógeno baseado na extração
predatória dos recursos florestais, seguidos pela substituição da floresta por
extensas áreas de pastagem ou agricultura, mostrou-se inapropriado para a
região. A ocupação se fez em surtos devassadores ligados à valorização
momentânea de produtos nos mercados nacional e internacional, seguidos de
longos períodos de estagnação (Becker, 2004). Os custos ambientais deste
processo, com seus quase 600 mil km2 de
ecossistemas naturais modificados até 2000, ultrapassam, de longe, os limitados
benefícios sociais gerados por tais atividades.
Esquecendo-se da
ciência regional de qualidade que propunha a valorização e o uso sustentável
dos recursos naturais da região e apoiando-se na ciência limitada de alguns
técnicos prontos para propor monumentos a espécies exóticas de valor duvidoso,
tal como o colonião, esse modelo de ocupação tinha tudo para dar errado. Ao
longo desse processo, a população genuinamente amazônica nunca passou sequer de
um mero epifenômeno a serviço de sistemas econômicos poderosos com forte base
no centro-sul do país, em vez de ser considerada como o epicentro do planejamento
regional (Diniz, 1996).
O fracasso econômico
e social de tal modelo de colonização ao longo dos últimos trinta anos não foi
suficiente para frear o processo de ocupação desordenada do território
amazônico. Se antes tais atividades eram financiadas com recursos oficiais,
emprestados a juros baixos e com pagamentos a perder de vista, hoje, setores
altamente capitalizados da sociedade brasileira trabalham de forma integrada
para promover um novo período de ocupação agressiva na região, aproveitando-se
da fragilidade da estrutura estatal e do apoio de setores políticos pouco
apegados aos anseios regionais. Como conseqüência, temos testemunhado um
aumento considerável no desflorestamento na região. Nos últimos quatro anos,
cerca de 92 mil km2 de florestas foram destruídas.
Neste artigo
argumentaremos que a perda de biodiversidade com o desflorestamento é enorme e,
pela primeira vez, apresentaremos números concretos baseados em estudos
recentes sobre a densidade de plantas e alguns grupos animais na Amazônia. Com
base nisso, defenderemos a idéia de que não há necessidade de ampliar o
desflorestamento na região e que, portanto, qualquer licença de desmatamento
deveria ser proibida. Por fim, sugerimos que o sistema de ciência e tecnologia
regional deve ser descentralizado cada vez mais e integrado através do
desenvolvimento de programas de pesquisa integrados focalizados no desenho e no
teste de modelos de territórios sustentáveis para os diferentes setores da
região.
O
desflorestamento e a perda de biodiversidade:
estimando a magnitude da tragédia
estimando a magnitude da tragédia
A sociedade
brasileira recebe anualmente a estimativa de perda de floresta na Amazônia, a
qual é realizada com o uso de imagens de satélite e medida em quilômetros
quadrados. O que não se conhece é o quanto de recursos naturais se perde a cada
quilômetro quadrado de floresta destruída. Felizmente, pesquisas recentes sobre
a densidade de alguns grupos de organismos na Amazônia permitem-nos uma
primeira estimativa da magnitude real da tragédia causada pelo desflorestamento
registrado no último ano na região: cerca de 26.130 km2.
As plantas atingem
uma extraordinária biodiversidade na Amazônia. Estima-se que a região abrigue
cerca de quarenta mil espécies vasculares de plantas, das quais trinta mil são
endêmicas à região (Mittermeier et al.,
2003). Estudos sobre a densidade de plantas na Amazônia têm sido focalizados
principalmente sobre um grupo restrito de plantas: as árvores com troncos com
diâmetro a altura do peito acima de 10 cm. Em um hectare de floresta amazônica
podem ser encontradas entre quatrocentas e 750 árvores. Um estudo recente
estimou que, na região do arco do desmatamento, o número de árvores em 1 km2 de
floresta pode variar de 45 mil a 55 mil (Ter Steege, 2003). Multiplicando-se
estes valores pela área desflorestada entre 2003 e 2004, estimamos que entre
1.175.850.000 e 1.437.150.000 árvores foram cortadas nesta região.
As aves formam um dos
grupos de vertebrados mais bem conhecidos do planeta. Estima-se que a Amazônia
abrigue mais de mil espécies de aves e que, em um único quilômetro quadrado de
floresta amazônica, podem ser registradas cerca de 245-248 espécies. Estudos
recentes no Peru e na Guiana Francesa indicam que em um quilômetro quadrado de
floresta amazônica, vivem 1.658 indivíduos na Guiana Francesa (Thiollay, 1994),
e 1.910 no Peru (Terborgh et al.,
1990). Multiplicando estes números pela área desflorestada entre 2003 e 2004 na
Amazônia, estima-se que cerca de 43 a cinqüenta milhões de indivíduos foram
afetados.
Os primatas também
são bem conhecidos cientificamente. Eles formam um dos grupos mais diversos e
interessantes de mamíferos. Estudos feitos em várias regiões na Amazônia
mostram que a densidade de primatas varia bastante na região (Peres e Dolman,
2000). Na Amazônia ocorrem 14 gêneros de primatas, dos quais 5 ocorrem
exclusivamente nesta região. Em um quilômetro quadrado de floresta amazônica,
pode-se registrar até 14 espécies de primatas. Assim, para estimar quantos
indivíduos de primatas foram afetados com o desflorestamento, utilizamos
somente os estudos de primatas feitos em Rondônia, Mato Grosso e Pará, os
estados campeões do desflorestamento. Eles indicam que um quilômetro quadrado
de floresta pode abrigar entre 35 e 81 indivíduos (Peres e Dolman, 2000).
Multiplicando estes números pela área desflorestada, estimamos que entre
914.550 e 2.116.530 indivíduos foram afetados.
De forma bastante
simplificada, estes números ilustram quantas árvores, aves e primatas foram
perdidos por causa da última onda de desflorestamento na Amazônia e servem para
dar uma idéia da magnitude da perda e do desperdício de recursos naturais
associados a esse processo. Se incorporarmos a esses cálculos os outros grupos
de organismos, tais como anfíbios e répteis, talvez a perda real seja estimada
em algumas centenas de milhões de indivíduos. Entretanto, é difícil para a
população compreender a magnitude desta perda sem uma comparação adequada. No
caso da perda das árvores, se colocarmos todas as árvores derrubadas lado a
lado e assumirmos que cada uma tem o tronco com largura máxima de 10 cm,
podemos estimar, de forma bastante conservadora, que estas árvores se
estenderiam entre 117.585 e 143.715 km, o que representa cerca de três a três
vezes e meia a circunferência da Terra no Equador. Os números estimados para
animais são também enormes e muitas vezes maiores do que, por exemplo, o
tráfico ilegal de animais. Apenas para comparar com o comércio global de
animais silvestres, especula-se que entre dois e cinco milhões de aves e entre
25 mil e quarenta mil primatas são comercializados anualmente no mundo
(Renctas, 2001). Estes números são apenas frações do que se perdeu com o
desflorestamento do último ano na Amazônia. A Renctas (2001) chegou à conclusão
de que o tráfico de animais no Brasil retira, anualmente, da natureza, cerca de
38 milhões de indivíduos de diferentes grupos de organismos. Este número ainda
é inferior ao número de aves perdidas com o último ano de desflorestamento na
Amazônia.
A perda de biodiversidade
é a principal conseqüência do desflorestamento na Amazônia e é, também,
totalmente irreversível. Sempre é possível evitar a erosão dos solos e
recuperar corpos d'água e ciclagem de nutrientes utilizando sistemas ecológicos
simplificados, mas é impossível trazer de volta espécies extintas. Estudos
recentes mostram que as espécies na Amazônia não são amplamente distribuídas,
pois elas são restritas (Cracraft, 1985). Além disso, a maioria das espécies é
rara, possuindo populações pequenas, sendo muito sensíveis a quaisquer
modificações em seus hábitats (Terborgh et
al., 1990; Thiollay, 1994). O
desflorestamento em grande escala ameaça milhares de espécies, algumas das
quais já estão listadas como ameaçadas de extinção pelo governo federal, tais
como algumas espécies de aves (Dendrexetastes rufigula rufigula, Dendrocincla
merula badia,Dendrocincla fuliginosa trumai, Pyrrhura
lepida coerulescens, Pyrrhura
lepida lepida, Clytoctantes
atrogularis ePhlegopsis nigromaculata paraensis) e
primatas (Cebus kaapori, Allouatta belzelbul ululata e Chiropotes
satanas).
O
desmatamento zero como uma necessidade estratégica
de promover o desenvolvimento sustentável da Amazônia
de promover o desenvolvimento sustentável da Amazônia
Em 2003, o Museu
Paraense Emílio Goeldi e a Conservação Internacional elaboraram um documento
sugerindo, entre outras coisas, o desmatamento zero na Amazônia, com especial
ênfase no chamado "arco do desmatamento", uma ampla região que se
estende do Maranhão até Rondônia. Muitas recomendações propostas pelas duas
instituições foram incorporadas pelo governo federal no Plano de Controle e
Prevenção do Desmatamento. Entretanto, a recomendação principal não foi
adotada. O alto custo político de se tomar uma decisão forte como esta pode ter
limitado a ação governamental. Voltamos a insistir que determinar o
desmatamento zero na Amazônia por meio de um mecanismo legal é uma necessidade
real estratégica para o país, pois tem como propósito evitar a perda de
recursos naturais importantes, garantir a ordenação do espaço amazônico e
promover o desenvolvimento sustentável na região.
De forma
simplificada, a Amazônia pode ser dividida em terras públicas e privadas. As
terras privadas, adquiridas legalmente e com registros em cartórios, ocupam um
espaço restrito na região e estão concentradas em zonas de fronteiras antigas,
nos estados do Maranhão, Pará, Mato Grosso e Rondônia. A grande maioria destas
terras possui passivos ambientais enormes para com a sociedade brasileira, pois
muitas já removeram mais de 80% das florestas nessas propriedades, violando,
portanto, a legislação mais recente que define a área de reserva legal na
Amazônia brasileira. Para esses proprietários, um decreto como desmatamento
zero pouco afetaria as suas atividades econômicas. Na verdade, seria uma grande
oportunidade para que estes proprietários pudessem regularizar suas situações
junto aos órgãos ambientais através de compromissos mediados pelos Ministérios
Públicos Estadual e Federal. Tais acordos teriam como objetivo a re-composição da
floresta nativa em setores estratégicos da propriedade visando à manutenção de
processos ecológicos, tais como manutenção dos cursos d'água e inibição de
processos erosivos, necessários para garantir a sustentabilidade da produção
agropastoril. Institutos de pesquisa e organizações não-governamentais poderiam
estabelecer parcerias com os proprietários rurais para mapeamentos e apoio
técnico para a gestão ambiental eficaz das propriedades. O governo federal
também poderia incentivar a criação de reservas privadas do patrimônio natural
(RPPNs) nas reservas legais e áreas de proteção permanente das propriedades que
abrigassem populações de espécies de animais ameaçados de extinção ou que
garantissem conectividade entre unidades de conservação e/ ou terras indígenas.
As grandes empresas compradoras de produtos da região poderiam também oferecer
melhores preços e prioridade de compra para aquelas propriedades que criassem
RPPNs e mantivessem sistemas de gestão ambiental eficazes em suas propriedades.
No caso das poucas propriedades legalizadas e que ainda não tivessem ocupado
mais de 20% da área em atividades econômicas não florestais, o governo federal
poderia fornecer isenção de impostos, facilidades de crédito e apoio técnico
para o aumento da produtividade nas áreas que já estão sendo utilizadas.
As áreas públicas na
região podem ser classificadas em dois grupos: as que já tiveram um destino
definido e as que ainda não o tiveram. Entre as primeiras estão as unidades de
conservação, as terras indígenas e os projetos de desenvolvimento sustentável
(PDSs), que são gerenciadas pelos órgãos públicos. Cabe ao poder público
investir sozinho ou estabelecer parcerias estratégicas para que essas áreas
sejam implementadas de forma consistente e passem a desempenhar, de forma
adequada, as funções sociais para as quais foram criadas.
Entre as áreas
públicas que não tiveram seus destinos definidos, podemos reconhecer três
grandes categorias: a) as áreas não ocupadas; b) as áreas ocupadas e ainda
cobertas por florestas; e c) as áreas ocupadas e já alteradas. As'áreas não
ocupadas deveriam ser transformadas prioritariamente em unidades de conservação
de proteção integral. Essas unidades devem ser grandes (mais de 500 mil ha),
pois elas formam a espinha dorsal de um sistema de unidades de conservação
regional. Elas protegem a diversidade biológica da região com nenhuma ou pouca
influência humana e desempenham um papel muito importante, como verdadeiros
bancos naturais de recursos genéticos para aproveitamento econômico futuro. As
áreas ocupadas e cobertas por florestas precisam ser estudadas detalhadamente
para verificar as diferentes categorias socioambientais que usam o território.
Se forem populações indígenas, então a área deveria ser demarcada como terras
indígenas. Se forem populações tradicionais, então estas áreas poderiam ser
destinadas à criação e à implementação de unidades de conservação de uso
sustentável, tais como reservas extrativistas ou de desenvolvimento
sustentável. Se os ocupantes da terra não são populações tradicionais, então
estudos mais detalhados precisam ser realizados para definir o melhor destino
das terras. Hoje existe a possibilidade de se estabelecer Projetos de
Desenvolvimento Sustentável (PDSs), ou mesmo utilizar o mecanismo de concessão
florestal por tempo limitado, caso este venha a ser implementado. Porém, nesse
caso, o sucesso dessa iniciativa dependerá da fiscalização da exploração ilegal
de madeira, uma vez que a existência de madeira ilegal no mercado desestabiliza
os preços e inviabiliza a exploração sustentável. Finalmente, no caso das áreas
públicas ocupadas e já alteradas, a estratégia mais eficaz seria regularizá-las
dentro de um amplo programa de ordenamento fundiário, e apoio ao pequeno
produtor. Nesse programa, experiências como o Proambiente e apoios a sistemas
agroflorestais podem ser essenciais para garantir a recuperação das reservas
legais e das áreas de proteção permanente destas áreas.
A proposta do
desmatamento zero foi duramente criticada por indivíduos e organizações sem uma
análise detalhada e multidimensional da situação atual. Alguns setores falam
hoje de desmatamento legal, direcionado para áreas com solos produtivos e
adequados para a agricultura. Como essas áreas são, em geral, enclaves na bacia
amazônica, elas podem possivelmente abrigar comunidades biológicas únicas e,
portanto, recursos genéticos essenciais para a nação. Conceder licenças de
desmatamento na ausência de conhecimento adequado da importância estratégica de
uma área para a manutenção do patrimônio biológico brasileiro é violar o
princípio básico da precaução, tão bem aceito pelos países signatários da
Convenção da Diversidade Biológica.
A proposta do
desmatamento zero não visa a imobilizar o desenvolvimento econômico da região.
Na verdade, é uma proposta inovadora que visa a promover uma ampla mobilização
de esforços e recursos para que os quase 600 mil km2 de
áreas que já foram desflorestadas na Amazônia legal tenham uma destinação
social adequada. Esta área equivale à área do estado de Minas Gerais, que abriga
uma população equivalente à atual população da Amazônia e possui melhor
qualidade de vida do que os estados amazônicos. Assim, não há justificativa
social ou econômica concreta para continuar ampliando a substituição da
floresta por outras formas de uso da terra. Acreditamos que com um programa
ambicioso de regularização fundiária e uso intensivo das áreas já alteradas
seria possível estabelecer um clima estável que favoreça investimentos de longo
prazo. Paralelamente, é necessário que os governos federal e estadual
reconheçam a vocação florestal da região e incentivem uma estratégia integrada
de desenvolvimento que valorize a floresta em todos os seus sentidos.
Experiências inovadoras como as do Estado do Amazonas e do Amapá demonstram que
há interesse regional em promover o desenvolvimento, considerando as unidades
de conservação e o uso sustentável dos recursos florestais como oportunidades
de negócios. Uma nova economia regional está em formação e, com a sua
implementação, uma grande parte da cobertura floresta da Amazônia estaria
garantida. Assim, a chave para frear o desmatamento na região e aumentar
significativamente os indicadores de qualidade de vida da população regional é
combinar a conservação e o uso sustentável de 83% da floresta amazônica com o
uso intensivo, com amplo suporte tecnológico e infra-estrutura adequada dos 17%
de áreas já alteradas.
Territórios
sustentáveis na Amazônia e a necessidade de pesquisas
integradas para o desenvolvimento da região
integradas para o desenvolvimento da região
Novas estratégias de
ciência e tecnologia (C&T) para a região amazônica devem considerar a
criação de programas que visem a induzir a produção do conhecimento,
conservação e geração de riquezas na região, e um planejamento que garanta que
o componente de informação e conhecimento receba destaque para subsidiar linhas
de ação de manutenção dos principais processos biológicos, da promoção de uso
dos recursos naturais, da conservação da biodiversidade e da gestão integrada
do território. Isto requer uma abordagem interdisciplinar, que integre temas
biológicos e socioculturais (Vieira et
al., 2000), processos climáticos (Nobre e Nobre, 2002),
estudos das paisagens (Ab'Sáber, 2002), padrões e processos da origem e
manutenção da biodiversidade (Haffer e Prance, 2002) e recursos hídricos.
O sistema atual de
C&T na Amazônia está centralizado nas instituições de ensino e pesquisa das
duas maiores metrópoles regionais. Os investimentos na região são poucos e não
atingem, por exemplo, a mesma proporção da contribuição da região ao PIB nacional
(Diniz, 1996). O maior desafio da ciência amazônica é descentralizar e, ao
mesmo tempo, integrar suas ações de uma forma coerente e plenamente engajada
nos principais desafios regionais. A descentralização pode ser feita via
criação de institutos de pesquisa ou instituições de ensino superior públicos
ou privados em municípios estratégicos da região. É preciso ter um programa
forte de atração de mestres e doutores para estes novos pólos associado à
construção de uma infra-estrutura de trabalho que permita a estes pioneiros se
manterem conectados à grande rede mundial de pesquisas. Com o avanço das
tecnologias de comunicação isso pode ser feito de forma rápida e a um baixo
custo, como, por exemplo, a expansão da Universidade do Estado do Amazonas
(UEA), que segue este princípio. A integração das ações de ciência e tecnologia
passa pelo desenvolvimento de grandes projetos temáticos via criação e expansão
de redes de colaboração interinstitucional. O intercâmbio de experiências e o
compartilhamento de laboratórios reduziriam os custos da pesquisa e criariam um
ambiente permanente de aprendizado sobre os contextos sociais e políticos das
diferentes regiões da Amazônia.
Dentre os vários
temas integrados possíveis de investigação na Amazônia, o que está mais relacionado
ao processo de gestão territorial da região é o planejamento e a implementação
de territórios sustentáveis, ou seja,um mosaico de usos de terra
complementares gerenciados de forma integrada que permitam conservar a
biodiversidade e manter tanto a dinâmica dos processos ecológicos como a
dinâmica socioeconômica de um determinado território. Para isso, é preciso
integrar e aplicar os conhecimentos científicos diversos para desenvolver
modelos sustentáveis de uso do território na região.
Projetos temáticos
deste tipo precisam ser desenvolvidos por um consórcio de organizações que
formem grupos de pesquisa multidisciplinares. A princípio, seis projetos seriam
apoiados, devendo estar distribuídos de acordo com a proposta de divisão
geopolítica da Amazônia de Becker (2001) que distingue três grandes unidades
sub-regionais: a Amazônia oriental e meridional, que abarca o arco do
desmatamento, a Amazônia central e a Amazônia ocidental. Dessa forma, os
projetos-piloto deveriam ser assim distribuídos: a) dois ao longo do arco do
desmatamento ou Amazônia oriental e meridional, sendo um em uma área de
colonização mais antiga (leste do Pará) e um em uma área de colonização mais
recente (Mato Grosso, Rondônia ou sul do Pará); b) dois na Amazônia central
(que inclui Amapá, Pará, leste do Amazonas e parte de Rondônia); e c) dois na
Amazônia oriental (que inclui o resto do Amazonas, Roraima e Acre). Essa
distribuição dos projetos-piloto permite cobrir, de forma adequada, a maioria
dos padrões de uso da terra na região.
Cada projeto deve
definir precisamente a "unidade territorial de análise", que não deve
ser menor do que os limites municipais ou de uma bacia hidrográfica (a escala
da bacia ainda precisa ser definida). O projeto deve também contar com um forte
apoio local (prefeituras, sociedade civil organizada etc.) e ser liderado por
um pesquisador com competência científica demonstrada na forma de publicações
científicas, formação de recursos humanos e coordenação de projetos
multidisciplinares. O pesquisador deve ter pelo menos o título de doutor.
Cada projeto dever
ser composto por quatro componentes principais: a) coleta de informações
básicas; b) organização e integração de informações; c) disseminação e
divulgação; e d) formação de recursos humanos.
O componente de informações
básicas, por sua vez, deve ser composto pelo menos dos seguintes itens: a)
caracterização da paisagem; b) estrutura e funcionamento dos ecossistemas e c)
dinâmica econômica e social. A caracterização da paisagem inclui os seguintes
assuntos: a) desenvolvimento de modelos de paisagem através da integração de
informações biológicas (vegetação), solo, geomorfologia, clima e biofísica; b)
desenvolvimento de protocolos de inventário biológico para grupos indicadores
da qualidade do hábitat; c) desenvolvimento de modelos para predizer a
distribuição de espécies indicadoras a partir da integração das informações do
inventário biológico com as paisagens; d) estudo da área de vida e densidade de
populações de espécies indicadoras; e e) ciclos de vetores de doenças. O estudo
da estrutura e funcionamento de ecossistemas deve incluir ainda a) o estudo de
interações biológicas críticas, tais como dispersão de sementes e polinização;
b) a dinâmica de populações de espécies indicadoras; a dinâmica da paisagem, incluindo
ciclos naturais de perturbação e sucessão vegetal; e c) a dinâmica biofísica e
biogeoquímica dos ecossistemas, desenvolvimento de modelos e instrumentos de
simulação da dinâmica dos ecossistemas. Para compreender as tendências atuais
das formas de uso dos recursos naturais (e poder melhor orientá-las) é
indispensável: a) identificar os atores envolvidos no processo, e o papel
dessas redes na estratégia das populações; b) avaliar os padrões de
desmatamento e de conservação; c) identificar os sistemas de produção, cadeias
produtivas e técnicas; d) analisar a sustentabilidade de alternativas
inovadoras (manejo florestal; recursos madeireiros e não-madeireiros;
recuperação de áreas alteradas; manejo de florestas secundárias; valoração
monetária/ não monetária; economia da pesca; piscicultura; biotecnologia); e)
identificar as demandas em recursos e meios, tais como terra, crédito e ciência
e tecnologia; f) realizar análise de risco1 para
a saúde humana dos padrões de uso da terra existentes e indicadores de saúde
das alternativas inovadoras sustentáveis.
O componente de
organização e integração das informações é composto de dois itens principais. O
primeiro diz respeito à construção de base de dados e à análise espacial, pois
a organização de um banco de dados sobre socioeconomia e ecologia das regiões
estudadas e análise espacial integrando essas informações faz com que as
possibilidades de uso interdisciplinar e interinstitucional sejam ampliadas. O
segundo item requer a elaboração de um sistema de apoio à tomada de decisão. A
integração das informações dos projetos deve ficar disponível a outras
instituições, principalmente para tomadores de decisão. É preciso, então,
construir uma "base tecnológica de integração" através do
desenvolvimento de software abertos
e disponíveis na internet,
mapas temáticos etc. Esses produtos permitirão uma visualização integrada dos
resultados dos projetos e otimizarão tomadas de decisão em níveis locais e
regionais.
Um dos principais
desafios da comunidade científica que estuda a problemática amazônica dentro de
um contexto de desenvolvimento sustentável é o impacto dos resultados de
pesquisa nas mudanças de comportamento social ou políticas públicas. Nesse
sentido, é necessário haver uma estratégia adequada para a disseminação e a
divulgação dos resultados dos projetos-piloto.
Um dos principais
pontos do programa-piloto é a sustentabilidade das soluções apresentadas para proteger
as florestas tropicais. Com o atual reduzido número de pesquisadores na
Amazônia, a formação de jovens cientistas com visão integrada das diversas
áreas do conhecimento, face aos desafios de gestão territorial, é fundamental
para o sucesso do projeto a médio prazo. Entende-se que o enfoque
multidisciplinar é essencial na busca de soluções economicamente viáveis e
ambientalmente sustentáveis para a Amazônia. Nesse sentido, os projetos deverão
necessariamente estar vinculados a cursos de graduação e pós-graduação visando
à formação de graduados, mestres e doutores com ampla compreensão dos problemas
regionais. Tais cursos devem ter tradição em estudos amazônicos e/ ou a
sinalização de prioridade nesta área. A estratégia de formação de pessoal numa
proposta como essa deve permitir a formação de profissionais, com experiência
na aplicação de abordagens modernas de pesquisa e na ação interdisciplinar, com
vistas ao desenvolvimento sustentável.
Programas integrados
deste tipo produzem mais resultados e são mais estratégicos do que um conjunto
de projetos isolados. Assim, os seguintes produtos poderiam ser obtidos a
partir deste programa de investigação científica: a) base para a formulação de
um programa de desenvolvimento sustentável para a Amazônia; b) desenvolvimento
de uma ferramenta de gestão territorial; c) criação de banco de dados
integrados, acessíveis aos tomadores de decisão; d) validação de
"tecnologias" sustentáveis; e) formação de grupos de pesquisa locais;
f) fortalecimento de cursos de graduação e pós-graduação da Amazônia. As
vantagens desta proposta em relação às formas tradicionais de apoio à pesquisa
na região são as seguintes: a) promove o desenvolvimento de projetos centrados
em espaços territoriais definidos; b) permite uma abordagem integrada que
possibilita replicabilidade; c) apóia uma política de ciência e tecnologia
baseada em realidades concretas; d) desenvolve projetos-piloto que permitem
desenvolver instrumentos mais refinados de análise, rever e avançar na teoria;
e) gera cenários futuros para a região; f) permite integração com outros
projetos.
Nota
1 A
análise de risco é importante para quem se interessa pela saúde em geral pela
qualidade de vida de populações humanas e planeja um estudo interdisciplinar e
multiinstitucional. Essa análise integra as informações que caracterizam a área
a ser estudada e as populações presentes e o conhecimento epidemiológico
preexistente (o que envolve informações sobre vetores, endemias e demais
doenças) com as múltiplas interfaces da pesquisa global; avalia o risco e, na
última fase, propõe formas de trabalhar com esses riscos presentes.
Referências
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