Amazônia - Poluição das Águas


É preciso salvar também as cidades
Mais de 70% do povo da região vive em cidades
e enfrenta problemas similares aos de quem mora
nas metrópoles do sudeste - só que na Amazônia
eles são ainda piores



Ronaldo Soares, de Belém
Pedro Martinelli
DESASTRE AMBIENTAL
Palafitas da favela Igarapé do 40, em Manaus: esgoto e lixo são lançados diretamente
sobre os rios, cuja água também é usada para banho

Para a maioria dos que a veem de fora, a Amazônia é uma enorme extensão verde salpicada de pequenas comunidades ribeirinhas. Nessa visão, a preservação das matas estaria garantida se o "povo da floresta" tivesse boas condições de vida e não precisasse destruir o ambiente para se sustentar. Pois bem, o povo não está mais na floresta. Começou a sair de lá nos anos 70. Há quarenta anos, apenas 3,5% da população da Amazônia vivia em cidades. Hoje, são 73%. Só as áreas metropolitanas de Manaus e Belém abrigam, cada uma, 2 milhões de habitantes. E eles vivem em condições semelhantes - mas, em geral, piores - às dos cidadãos do resto do país. Para os que moram lá, o problema mais grave não é a devastação. São as favelas, o crime e o desemprego - preocupações idênticas às de quem vive nas outras capitais do Brasil, com a agravante de que os nortistas dispõem da pior infraestrutura. Na região que concentra 80% da água doce do país, falta água encanada. Em Rondônia, apenas 40% das casas têm acesso a esse serviço. A situação dos esgotos é ainda pior: somente 9,7% dos domicílios do Norte estão ligados à rede coletora. A média nacional é de 51%. Mais de 90% dos municípios não dispõem de aterros sanitários. O lixo é disposto a céu aberto ou despejado in natura nos rios.
Como era de esperar, a ocupação desordenada das cidades teve severo impacto na saúde da população local. As doenças associadas à pobreza e ao súbito adensamento populacional grassaram. A hanseníase, por exemplo, acomete 54 de cada 100 000 habitantes da região, duas vezes e meia a incidência do resto do país. No Pará e no Amazonas, a tuberculose é quase endêmica. "Com o crescimento das favelas, a ocorrência dessas doenças aumentou, mas os dados oficiais são falhos. Muitos casos não integram as estatísticas oficiais porque a população não tem acesso ao sistema de saúde, e eles simplesmente não são diagnosticados", diz Marcus Vinícius Lacerda, da Fundação de Medicina Tropical do Amazonas. Na Amazônia, que já liderava as estatísticas de casos de leishmaniose, o avanço das cidades sobre a floresta contribuiu para sua propagação. Em apenas seis anos, entre 2002 e 2008, o número de ocorrências registradas dobrou: passou de 2,5 para 5,2 por 100 000 habitantes.
A urbanização repentina também trouxe a malária, que é típica da floresta, para o coração das cidades. Como a leishmaniose, a malária é transmitida por um mosquito, o Anopheles, e prolifera em zonas urbanas por incompetência das autoridades e desleixo dos moradores, que mantêm em casa água empoçada, na qual o inseto se reproduz. A doença é endêmica na Região Norte, que registrou 297 000 casos no ano passado. Manaus, que concentra o maior número de vítimas, sofre de um problema adicional para combater o mosquito. Encravados no meio da floresta, seus bairros são de fácil acesso para o Anopheles. A situação também é crítica em Porto Velho e Cruzeiro do Sul, a segunda maior cidade do Acre. Junto com Manaus, essas cidades concentram 25% das ocorrências nacionais de malária. A capital da malária, no entanto, é outra. É impossível encontrar um entre os 27 000 habitantes de Anajás, no Arquipélago de Marajó, que não tenha contraído a doença. "Aqui, a gente não pergunta se a pessoa já teve malária, mas quantas vezes ela teve", diz Marcus Jardim, servidor da prefeitura local. Desde que chegou a Anajás, há três anos, Jardim contraiu a doença quatro vezes.
Aterrador para os habitantes de outras regiões, esse cenário de doenças, sujeira e carência envolto pela mata não parece tão ruim para os ribeirinhos. Eles abandonam as margens de rios e povoados à beira de estradas porque vivem melhor nas capitais e nas cidades médias. Há nove meses, Rosângela Xavier, de 26 anos, convenceu seu marido a deixar Itacoatiara e levá-la junto com os dois filhos para Manaus. A família Xavier mora na favela de Luís Otávio, em um barraco de 9 metros quadrados mobiliado com dois colchões, duas redes, geladeira, fogão e um ventilador, que não refresca o ambiente, mas espanta os mosquitos. Como Rosângela, boa parte dos moradores não tem banheiro em casa. Eles compartilham cercadinhos improvisados às margens de um igarapé. Rosângela paga 30 reais por mês para ter água potável. Esse, aliás, é o único ponto que a incomoda na vida na cidade. "Aqui, a gente paga por tudo." Rosângela diz que melhorou de vida. Tem energia em casa, graças a um "gato" na rede elétrica, e recebe 100 reais mensais do Bolsa Família.
Pedro Martinelli e Araquém Alcântara
INCRÍVEL FALTA DE ÁGUA
Apesar de encravadas na maior bacia hidrográfica do planeta, muitas cidades não têm água potável. Ao lado, cacimba no centro de Manaus
O isolamento é um dos aspectos mais cruéis da vida na Amazônia, onde 5% dos brasileiros se espalham por 60% do território nacional. Um terço dos amazônidas vive em áreas nas quais o estado não se preocupa em fornecer luz, água potável, serviços de saúde e escolas. Algumas localidades são tão remotas que nelas não há dinheiro, porque ele não serve para comprar nada. O comércio ainda é feito por escambo. Se precisar de um médico, um morador de Mapuá, em Marajó, terá de viajar vinte horas de barco para chegar a Breves, que dispõe de um pequeno hospital. Se o caso for mais grave, levará mais doze horas de barco até Belém. Isso pode ocorrer até dentro de um município. Altamira, no Pará, tem distritos a 900 quilômetros do centro - mais distantes que Brasília e Belo Horizonte. O povoamento rarefeito leva os governantes a preterir a região em prol de outras onde a densidade populacional é maior e, por consequência, recebem mais recursos do fundo nacional de municípios. "O critério demográfico prejudica a Amazônia na distribuição de recursos federais", lamenta Jorge Viana, ex-governador do Acre.
Por isso, os governos incentivaram o êxodo em direção às cidades - e ainda o fazem. Nos anos 70 e 80, carros de som do governo do Amazonas convidavam os moradores do interior a se mudar para Manaus, onde haveria vagas na incipiente indústria da Zona Franca. É ingênuo pensar que a Amazônia será salva enquanto forem essas as condições de vida de quem mora lá. É necessário salvar também os amazônidas. Seu passado prova que o descalabro atual decorre de uma longa estagnação econômica que começou com a crise da borracha. Pouco antes, em 1904, o escritor Euclides da Cunha assombrava-se com a infraestrutura da região. "Não se imagina no Brasil o que é a cidade de Belém, com seus edifícios desmesurados, suas praças incomparáveis e sua gente de hábitos europeus, cavalheira e generosa", escreveu em uma carta. O futuro da Amazônia depende, agora, da urbanização de favelas, de investimentos em água potável, saneamento, iluminação e da promoção de um choque de segurança. Há boas soluções para esses problemas. Com um sistema de captação e tratamento de água das chuvas, o Amazonas reduziu em 70% os casos de diarreia em algumas comunidades. Há áreas que podem ser iluminadas com energia solar. As polícias do Pará e do Amazonas podem trabalhar juntas para fiscalizar os rios e evitar que a cocaí na chegue a Belém e Manaus. Essas medidas dependem do crescimento da economia local para ser universalizadas. Caso contrário, a população da Amazônia continuará entregue à própria sorte e a floresta, à destruição.



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